O NFT como verbo
O NFT como verbo
Gustavo Perino apresenta uma visão sobre NFT que extrapola a perspectiva sobre o valor individual desta tecnologia, privilegiando mais suas funções e objetivos.
Resumo
Desde que ouvimos falar dos non-fungible tokens (NFT), é sempre em relação a um “produto” ou elemento que serve para certificar um objeto único e preservar o seu valor. Permanentemente, a discussão gira em torno do valor individual, e poucas vezes da sua função, que ultrapassa o substantivo, um objeto de com e vira um verbo. Sem sombra de dúvidas, os NFT são a segunda onda de revolução associada ao blockchain.
Introdução
Os non-fungible tokens (NFT) são uma tecnologia que permite dar vida virtual aos bens físicos. Com isso, sua comercialização e seu registro cobram um novo sentido. Além dos benefícios que a tecnologia trouxe para as produções digitais de arte – como arte digital e criptoarte –, pela primeira vez na história, todo o universo das obras físicas tem a possibilidade de reunir sua documentação e sua identidade digital, permitindo que imagens, detalhes, estudos realizados, registros de exposições e textos curatoriais se encontrem dentro de um único ecossistema digital, descentralizado, universal e imutável. Estamos vendo a ponta do iceberg, sete anos após a criação do Ethereum.[1] Os NFT estão se multiplicando muito além das especulações e aplicações fúteis. Apresentaremos, neste artigo, algumas novidades que farão parte do nosso cotidiano em um curto prazo de tempo.
NFT
O NFT é “um ativo digital, baseado em blockchain, que representa objetos reais” (COSSETTI, 2021). Blockchain é “uma rede que funciona com blocos que carregam sempre uma impressão digital. O bloco seguinte também vai conter a impressão digital do anterior, mais o seu próprio conteúdo e, com essas duas informações, gerar sua própria impressão digital; conferível por todos” (COSSETTI, 2021). Dito de outra maneira, pode-se associar a ideia de blockchain à de um cartório digital, descentralizado e universal. A propriedade de um NFT é registrada e pode ser transferida pelo proprietário, permitindo que o ativo seja vendido, alugado e negociado.[2]
A criação de um NFT se realiza quando uma empresa registra as regras básicas num contrato inteligente (smart contract). Essas regras incluem a definição da quantidade de tokens, do valor do token e das condições especiais nas quais o contrato será executado, entre outros aspectos. Uma vez criado o NFT, a plataforma servirá como um cartório inteligente para todas as transações futuras, garantindo que as condições estabelecidas sejam cumpridas. Para comprar um token, o processo é simples: a partir do momento em que se decide fazer a compra, a plataforma confere a sua disponibilidade e a sua qualificação. Você então recebe seu token e o sistema atualiza as informações de propriedade e disponibilidade. Para transferir, alugar ou emprestar seu token, deve-se acessar a mesma plataforma. O blockchain registrará a atividade, impactando todo o sistema – que pode ser auditado, embora isso não mude a transação registrada.
Mercado de arte aquecido em épocas de crise
O ano de 2022 nos trouxe mais um cenário de incertezas. Segundo um informe do Fundo Monetário Internacional (FMI), as perspectivas globais da saída da pandemia de covid-19 foram afetadas seriamente pela invasão da Ucrânia pela Rússia (GOURINCHAS, 2022). Diante desse cenário, o mundo das artes opera na contramão. De acordo com “The contemporary art market report in 2021”,[3] da Artprice, o mercado esteve em alta de 16% no decorrer de 2022 até hoje, comparado com o S&P 500 – índice formado pelas 500 maiores empresas do mercado de ações dos Estados Unidos –, que caiu quase 14% durante o mesmo período. Isso evidencia como as obras de arte sempre são um refúgio de valor em épocas de crise ou incertezas. Muito do crescimento do mercado de arte pode ser atribuído ao maior acesso aos grandes leilões realizados on-line (VANDENBOSS, 2022). Trata-se de uma mudança de paradigma que veio com a pandemia e que provocou mudanças globais nas maneiras de consumir, comprar, estudar e se relacionar utilizando a virtualidade.
Esses novos paradigmas vêm com a incorporação das obras de arte ao mercado on-line, nascido há mais de 20 anos. Pouco se pode vislumbrar sobre o impacto dos NFT no mercado de arte global na próxima década. Segundo o informe do site especializado Statista Digital Economy Compass 2022, o Brasil é o terceiro país do mundo com maior adoção de NFT (AMARO, 2022). Segundo um estudo da comunidade DappRadar, a liderança é da China, seguida dos Estados Unidos; e no mesmo terceiro lugar, que soma mais de 168 mil usuários ativos (AMARO, 2022), estão Reino Unido, Rússia e Filipinas ao lado do Brasil. Diante desse cenário, é possível projetar um enorme crescimento do setor nos próximos anos.
Falsificação de arte, falsificação dos NFT
No mundo das artes, o problema da falsificação é tão antigo quanto os registros da nossa história. Foi no século XIX que as práticas de falsificação se consolidaram. E, em apenas dois séculos, metade das obras de arte que circulavam no mercado era falsa ou tinha problemas de identificação (GIVOA, 2016).
Os estudos de Theóphile Thoré, Paul Lacroix e Giovanni Morelli formaram a base metodológica usada atualmente para o enfrentamento da falsificação. Com o apoio da tecnologia, a perícia de arte é um campo em permanente evolução, e que se torna cada vez mais relevante para a determinação técnica e científica da autenticidade e da datação das obras de arte (PERINO, 2020).
O sistema da arte é uma cadeia correlativa de agentes que vai muito além do artista criador da obra de arte. É uma complexa relação que envolve curadores, críticos de arte, produtores culturais, museus e instituições, pesquisadores, peritos, art dealers, galerias de arte, leiloeiros, art appraisal e art advisors, entre outros. Era de se esperar que toda essa complexidade fosse levada ao mundo digital. O NFT como certificado de uma obra de arte, que apareceu como uma promessa de eliminar de vez a problemática dos registros das obras, a falta de proveniência e a legitimidade delas, se encontrou rapidamente com uma realidade que nenhum sistema ou inteligência artificial poderá isoladamente mudar: a intervenção necessária dos especialistas que trabalham e atuam no sistema da arte. Pouco tempo depois da explosão dos NFT na mídia e do seu impacto nesse mundo, começamos a perceber que os mesmos problemas do mercado tradicional podem ser vistos no virtual, e que também nos acompanharão no metaverso.
Os NFT falsificados têm criado grandes problemas para as plataformas digitais (BATYCKA, 2022). Em meio ao crescimento extraordinário dos NFT, as falsificações tornam-se cada vez mais comuns, configurando-se em uma dor de cabeça para quem opera nesse mercado emergente. “O cenário NFT constitui uma nova fronteira – está operando um pouco como o Wild West”, afirma Mark Lee, especialista em falsificação de marcas e em roubo de propriedade intelectual, ao The Art Newspaper. “As marcas estão lutando para equilibrar como fazer uso de seus ativos digitais para fins de marketing e vendas com a proteção de sua propriedade intelectual, além de evitar que seus clientes comprem NFTs falsificados sem saber” (BATYCKA, 2022).
As marcas Protect de DeviantArt, SnifflesNFT e MarqVision, a partir da inteligência artificial, são softwares criados para tentar lutar contra a falsificação dos NFT. A OpenSea e a Rarible tomaram medidas para resolver o problema implementando um sistema adicional de verificação moderado por humanos, maneira antiga e eficiente para tratar de descobrir as sutis e imperceptíveis manobras dos falsários. A questão até motivou a criação de uma conta no Twitter, @NFTtheft, que tem documentado alguns dos casos mais flagrantes. Um dos tweets denuncia: “@ValhallaDegens encontrou on-line uma foto de uma pintura a óleo e agora está usando-a para sua coleção NFT. Não há fim para este constante roubo de arte, não é mesmo? A pintura original, Burning sadness, é de Ana Gratess e pode ser encontrada aqui” (GRATESS, 2017; NFT THEFTS, 2022).
Existe ainda outro problema nos registros dos NFT: se os dados de uma carteira são roubados pelo denominado phishing scam (roubo de dados digitais), o “proprietário” é considerado o real – isso no caso de o NFT ser verdadeiramente único, já que um mesmo artista pode criá-lo (mintear) em diferentes plataformas e ter em cada uma delas um ativo da mesma peça. É por isso que se faz necessário pensar em uma estrutura de segurança que envolva os atores do mercado e na qual os validadores da arte estejam presentes, como no mercado de arte tradicional.
Conforme “análise da OpenSea, mais de 80% dos NFT’s listados no mercado eram arte plagiada, coleções falsas, ou spam” (RAVENSCRAFT, 2022). Uma pesquisa do Alan Turing Institute que se concentrou principalmente nos dados da OpenSea constatou que 75% dos NFT foram vendidos por menos de 15 dólares, e apenas 1% foi negociado acima dos 1,5 mil dólares (MATTHIEU et al., 2021). “É muito claro que muito poucas pessoas podem realmente vender acima de US$ 1.500”, diz Mauro Martino, do Laboratório Visual AI da IBM. “Não é um lugar mágico onde todos se tornam ricos. É realmente a mesma realidade em qualquer outro tipo de negócio” (RAVENSCRAFT, 2022).
Mercado da moda, luxo e exclusividade
A Gucci adotou o uso de moedas criptográficas como forma de pagamento, o que valida a marca como “símbolo de luxo disruptivo”. Foi também a primeira marca de luxo a vender uma ficha NFT, em maio de 2021, quando lançou um filme inspirado em sua coleção Aria, criada pelo designer italiano Alessandro Michele (MALDONADO, 2022). “A marca de moda se aventurou em vários mundos metaversivos, como a plataforma Roblox e The Sandbox, onde adquiriu terrenos para recriar seu espaço da Gucci Vault. Com essa iniciativa, a Gucci procura aproximar-se das novas gerações” (MALDONADO, 2022).
Outras grandes marcas de moda, como Prada, Balenciaga, Nike, Adidas e Louis Vuitton, acolheram o mundo blockchain adotando criptomoedas e NFT. Empresas de outros ramos, como McDonald's, Coca-Cola e Ticketmaster, também entraram nesse mundo. A banda de rock Muse anunciou o lançamento de seu novo álbum como um NFT, levando a outro patamar a experiência dos fãs (MALDONADO, 2022). Até as grandes marcas de carros estão adotando as vantagens dos NFT, além da estrutura blockchain, já existente na indústria automotiva. Em 2022, uma “nova divisão de carros elétricos da Volvo passou a aceitar obras de arte como meio de pagamento” (BERTOLUCCI, 2021). Comparando o Volvo Polestar 3 com uma obra de arte, a empresa sueca permite comprar o carro em troca de “outras” obras de arte do mundo tradicional tokenizadas (BERTOLUCCI, 2021).
On-chain e off-chain, coisas de que precisamos saber
O site YourNFTs.org, no início de 2022, publicou que tinham sido descarregados todos os NFT armazenados no Ethereum (HLADEK, 2022). Isso foi algo incomum, que chamou a atenção para a segurança da informação. Que o NFT seja único e imutável não significa que não possam existir cópias – aliás, no mundo da arte, as cópias estão por todo lugar há séculos. O site revelou que mais de 5 gigabits de informação foram “descarregados”, o que chamou de uma espécie de “The Pirate Bay dos NFT” (HLADEK, 2022; WIKIPEDIA, 2022).
De acordo com a análise, 10% dos NFT estão no blockchain, on-chain, 40% estão off-chain – ou seja, em servidores privados, como as nuvens de armazenamento que usamos no cotidiano (iCloud, OneDrive, Google Drive etc.) – e os 50% restantes estão em InterPlanetary File System (IPFS) (HLADEK, 2022). O IPFS é um protocolo de armazenamento de arquivos descentralizado, com governança similar ao blockchain. O conteúdo armazenado em nuvem privada corre o maior risco de desaparecer, porque está sujeito a um único ponto de falha e, uma vez off-line, dificilmente pode ser restaurado.
O IPFS é uma das mais populares soluções de armazenamento de NFT: mesmo que o conteúdo fique eventualmente indisponível, com um backup apropriado, os arquivos IPFS podem ser restaurados e qualquer um pode pagar para garantir que eles permaneçam on-line (HLADEK, 2022). Como indica o especialista Nick Hladek, “um NFT típico pode ser pensado como uma estrutura em forma de árvore brotando do blockchain, em que a propriedade é assegurada na raiz (on-chain) e o conteúdo é armazenado nos galhos (off-chain)” (HLADEK, 2022).
Por causa do custo, a maioria das informações não é armazenada na rede blockchain. São registrados nela principalmente os protocolos que regem os contratos inteligentes. É por isso que um GIF de um macaco completamente armazenado on-chain atinge valores altíssimos, por ser um NFT totalmente “puro”.
NFT como poderosa ferramenta que une os universos físico e digital
Empresas como a Artory e a Verisart têm realizado o registro e o controle de obras de arte, oferecendo identificação, registro e garantias de imutabilidade das informações mediante a tokenização de obras. Nesse ecossistema, o próprio artista pode emitir seus certificados e interagir com os agentes de validação. Toda a cadeia de informações fica registrada no NFT, que passa a ser o expediente vivo da obra, mudando com cada acontecimento e estando atrelado à obra física por meio do chamado chip NFC smart tag, uma “etiqueta inteligente”.
A Artory (2022) vai inclusive além, já que entende a obra como um ativo financeiro que pela primeira vez conta com um registro confiável, descentralizado e perpétuo. A DApp[4] conta com uma rede de parcerias com empresas comerciais e de verificação de obras de arte, como a Christie´s, Wiston Art Group, Tagsmart, Art Discovery, Tefaf e Instituto Wildestein.
Na América do Sul existe um projeto similar em desenvolvimento, a Tokenizart (2022), que vai além do registro como ativo financeiro, pois oferece, dentro da mesma plataforma, a possibilidade de comercialização, o depósito em garantia de obras de arte para outras operações financeiras e o serviço de Escrow para a segurança nas operações, principalmente nas de arte física, que devem ser trasladadas de um ponto ao outro numa transferência de propriedade. Como sua parceira estadunidense, a Artory, a Tokenizart prevê um ecossistema de validadores parceiros que poderão verificar e certificar as obras de arte registradas, todas armazenadas em IPFS. “Em Tokenizart, procuramos desenvolver um ecossistema saudável, puro e abrangente, tentando simplificar os processos, ligando todos os participantes do mundo da arte que geram valor”, menciona Gabriel Mucchiut,[5] cofundador da empresa.
Gabriel explica que o chip é codificado num link único e seguro para um arquivo hospedado no IPFS e atrelado ao NFT mediante o smart contract blockchain (certify chip). O sistema está ligado à obra física e interage com as descrições e as fotos incorporadas no IPFS. “Existe o mito que com os NFT se garante o pagamento do direito de sequência e direitos autorais, porém isso depende de processos e trabalho humano dentro da rede que se opere. Potencialmente a ferramenta permite tudo isso, mas não é a realidade de muitas plataformas”.
O ideal é que, mediante a integração de diferentes infraestruturas digitais, participem artistas, seus representantes, colecionadores e diferentes atores do sistema. Cada um deles agregando valor e participando dentro da mesma plataforma de maneira independente e devidamente registrados.
Ao mintear um NFT na Tokenizart.com SmartContract, cria-se um título digital para o ativo físico ou digital subjacente associado. E, ao fazer isso, se dá valor de proprietário ou de detentor legítimo do bem associado e vinculado.
No Brasil, existem empresas do mercado de arte que estão implementando o NFT como política de segurança para as obras de arte física. É o caso da legendária galeria de arte paulistana Galeria Raquel Arnaud, que celebra seu 50º aniversário em 2023. Com consultoria da Givoa Art Consulting, a galeria tem implementado o sistema de chip NFC e NFT em algumas das obras que fizeram parte da exposição ArteRio 2022.
É possível vislumbrar que os NFT, assim como outras ferramentas digitais, serão incorporados ao nosso cotidiano, revolucionando a maneira como registramos bens. Sobre o mercado de arte, a sua incorporação promete outorgar mais transparência, além de permitir a diligência devida na comercialização das obras de arte.
Gustavo Perino
Bacharel em perícia e avaliação de obras de arte pela Universidad del Museo Social Argentino, na Argentina, e especialista em gestão cultural e comunicação pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Atua como professor universitário e cocoordenador do curso de pós-graduação em perícia de arte da Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. É membro do Instituto de Avaliação e Autenticação de obras de arte – i3a; do comitê científico das jornadas de peritagem de arte na Universidad Nebrija, na Espanha; e da Associação Nacional de Pesquisa em Tecnologia e Ciência do Patrimônio (Antecipa), em Belo Horizonte. Fundador e diretor da Givoa Art Consulting, empresa atuante no mercado desde 2012, é também criador e organizador da International conference artwork expertise (Icae).
PERINO, Gustavo. O NFT como verbo. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.